VOCÊ NÃO TEVE CULPA
(NEM EU)
Chalana enterra o seu filho. Não havia choros ou gritos desesperados no velório. Apenas um silêncio sepulcral. Todos ali evitavam se olhar. A cabeça baixa era regra. NInguém chegava perto do caixão lacrado. Gustavo destruiu sua cabeça, com uma espingarda de cano duplo, com um tiro no céu da boca.
Um adolescente, na flor da vida, que resolveu acabar com ela.
Chalana está estática. Seus olhos parecem secos de tanto chorar, sem brilho. Nem parece respirar.
Ninguém chega perto dela. Seu ex-marido, sua mãe, ex-sogra, irmãos. Apesar de cabisbaixos, os olhares de todos os presentes se dirigem a ela.
"Ela não percebeu?"
"Como ela não viu o que acontecia em baixo do próprio teto?"
"Mãe desnaturada que não sabe o que se passa com o próprio filho!"
Seu ex, depois de ficar horas do lado de fora, sem conseguir entrar na sala onde o caixão é velado, de fora, observa a
ex-esposa.
Parece querer tomar impulso para se dirigir a ex. Talvez ele se sinta culpado também.
Mas sua atual, com um monte de filhos pequenos, o segura pelo braço.
Quer ir embora e volta amnhã cedo, quando será o enterro.
_Eu preciso ficar. Pode ir.
_Não vou sozinha não. As crianças estão manhosas, chatas, querem dormir!
_Eu falei que não precisava vir e nem trazê-las.
_Não deixaria vir sozinho,e não arranjei quem ficasse com as crianças em cima da hora.
O caçula dos três começa a chorar de forma incoveniente, forte e sem controle.
Na verdade é a própria mãe que incita o choro. Beliscando a criança no colo, sem que as pessoas percebam.
Beth é uma raridade na humanidade atual. Teve 3 filhos seguidos, numa população que conseguiu alcançar a utopia, como a cura do câncer, a clonagem de órgãos, fazendo com que a vida chegue de forma plena aos 120 anos, com pouquíssimas guerras civis, a maioria tribais, em redutos de páises atrasados, onde a religião ainda impera, como alguns poucos redutos em países muçulmanos, africanos e oriente médio, a humanidade enfrenta agora o seu maior desafio: a infertilidade. Ela vem caindo em taxas alarmantes. Sem vírus, bactérias ou outra doença qualquer. Ela apenas tem existido, e resistindo contra toda tecnologia atual. Tentaram criar bebês artificialmente. Com úteros totalmente externos, mecanisados. Os bebês se desenvolviam, mas morriam logo após o término da formação.
A clonagem de seres formados têm o mesmo resultado. O ser clonado morrem logo que sai da incubadora. A clonagem óvulos, ovários, espermatozóides fracassaram.
Além da fertilidade em queda, a humanidade enfrenta outra epidemia: o suicídio.
Principalmente entre os adolescentes. Num mundo onde a felicidade é um estado quase que garantido desde o nascimento. O que tem feito as pessoas se matarem cada vez mais e mais?
Por que buscam cada vez mais e mais cedo a morte, num tempo em que morrer tornou-se quase uma opção ou um acidente alheio a nossa vontade?
Tem dias da semana que cemitérios fazem enterros um atrás de outro e com suas salas de velórios cheias.
A causa comum, não é a velhice, como achava que deveria ser, os cientístas que em décadas passadas, curaram todas as doenças da humanidade.
É a morte planejada. Desejada e colocada em prática pela pessoa que está sendo velada.
Tiro na cabeça e fogo no corpo é a mais comum.
Chalana enterra seu filho.
Agora que alguns presentes decidem se aproximar dela, mas ela não quer a companhia de ninguém. Vai pra casa sozinha, dirigindo e segurando o choro no volante.
Entra em seu apartamento e a tristeza se transforma em fúria.
"Como eu pude ser tão cega?!"
Começa a quebrar tudo a gritar. Alguns vizinhos ficam apreensivos mas decidem não se meter. O síndico começa a bater na porta, mas ela está surda aos chamados externos. Só grita, grita, chora, chuta, quebra, pega uma faca, rasga, arranha tudo, sofá, mesa, parede.
O síndico entra. Ele tem um código de segurança para emergências que abre todas as portas do prédio.
Chalana está com uma faca cravada no peito...
Na ambulância, sua vida é mantida, e os paramédicos já repassam informações ao hospital, para uma clonagem de emergência de um novo coração.
Ela está consciênte, apenas não reage. Não tem forças e nem desejo de reagir.
Seu filho, vestido como paramédico alisa sua testa.
_Você não teve culpa.
No centro de medicina mundial, um braço atual da ONU, cientistas e médicos discutem a nova epidemia humana.
"Pensamos demais em doenças do corpo, e esquecemos das doenças da alma."
Divaga uma das presentes. Após segundos de olhares reprovatórios um deles replica:
_Você pensa que está onde? Num templo budista?
Há décadas nos livramos de um dos maiores maus da humanidade, a religião. A ciência comprovou e provou o quanto é superior e que não precisamos dela. Agora você vem com esse papo de "doença da alma?!"
_Talvez ela tenha querido dizer, doenças mentais.
Ela responde:
_Nossas autópsias provam que os cérebros dos suicidas estão sadios, perfeitos.
_Está agindo como os antigos sacerdotes e crentes. O fato de ainda não termos encontrado a resposta, não quer dizer que seja sobrenatural.
Nos noticiários mundiais, começa a noticiar uma tragédia, que desde muitos séculos atrás não acontecia.
O suicídio em massa.
Jovens entre 16 e 25 anos alugaram um sítio para um final de semana. Quando o proprietário apareceu para retomar o imóvel, encontrou mais de 60 jovens mortos.
"A volta dos cultos religiosos?"
As primeiras noticias cogitam essa possibilidade, mas não há nada que remeta a alguma religião ou culto.
Livros sagrados, cartas de despedidas, imagens.
Litros de sangue banham toda a propriedae com corpos dilacerados por tiros e facadas.
Nos fundos, encontram foco de incêndio. Dão de cara com um grupo de meninos e meninas, queimando, já carbonizados, abraçados.
As coisas pioram. Pelo mundo, são encontrados adolescente e jovens adultos mortos, a primeiras conclusões é o suicídio coletivo.
Pais entram em pânico. Passam a monitorar seus filhos 24 horas, não os deixam sozinhos por nada. Causando rebeldia e brigas homéricas em família.
Chalana volta do hospital.
Os vizinhos a recebem.
Parece agora entender o que está acontecendo.
Abraços, flores, beijos. Arrumaram seu apartamento, com uma vaquinha entre eles, consertaram o apartamento e os móveis.
Um deles diz:
_Você não teve culpa.
Na sede das nações ocorrem manifestações. A população acredita que uma nova doença epidêmica está surgindo, e matando seus filhos. Querem respostas. Sede dos governos também são locais de manifestações.
Os líderes mundiais e os maiores cientistas do mundo estão perdidos diante da situação.
Saulo é um bem nascido de uma das famílias mais ricas do país. Nunca precisou trabalhar. Passa a vida viajando e colecionando antiguidades. Na sua mansão, há um salão gigante, onde ele as guarda. Uma eterna exposição dos seus tesouros que ele sempre visita pra admirar e exibir para os amigos.
Nos fundos, fica o tema Sagrado.
Com imagens de Deuses atualmente esquecidos e abandonados e outros objetos sagrados.
Nela está exposto um raríssimo livro que por milênios permeou a humanidade: uma bíblia.
Com luvas, ele pega o livro, folheia. Nunca leu, mas sabe da sua importância histórica.
Saulo tem cuidado tão bem da saúde, e com o acesso aos mais avançados tratamentos medicinais, ele tem 112 anos, aparenta ter 60, porém em forma, com um corpo sadio e mente sã. Sua expectativa, talvez supere a média mundial. Seu médico lhe deu pelo menos mais 30 anos de vida plena.
O livro é pesado e grosso. Como um homem da sua geração e das anteriores. Ele não tem paciencia de ler. Folheia, folheia, procura uma resposta, sem saber direito a pergunta.
Dias atrás, ele enterrou seu bisneto.
No outro canto, há uma seção dedicada às religiões afro-brasileiras.
Que desapareceu muito antes do cristianismo.
São raríssimos filmes do final do séc. XXI, leiloados a peso de ouro.
Adaptados a uma imagem em 3D, Saulo fica praticamente dentro da filmagem e passeia entre ela. Como se fizesse parte daquele momento.
Primeiro uma festa de erê.
Com adultos brincando como crianças, com chupeta na boca e cânticos aos ibeijis.
"O sec.XXI foi o último remanescente da selvageria e ignorância que acompanhou toda evolução da humnidade. Atrapalhando e atrasando seu conhecimento: a religião."
"Papai me manda um balão
Com todas as crianças que tem lá no céu
Tem doce, mamãe
Tem doce mamãe
Tem doce lá no jardim"
"TITIA ME DEU COCADA
TITIO ME DEU GUARANÁ
GOSTEI FOI DO CARURÚ
QUE A MAMÃE MANDOU PREPARAR
MAMÃE ME DEU CARURÚ
EU COMI CARURÚ DE MAMÃE
MAMÃE ME DEU CARURÚ
EU COMI CARURÚ DE MAMÃE"
Entre ele, também há crianças que correm, e brinca por entre o terreiro. Ouriçadas pelos doces e presentes.
Ele repara nos olhares dos pequenos, nunca tinha visto um brilho igual em toda sua vida.
A filmagem é curta, e começa a "derreter", enquanto surge a próxima no seu lugar, nesse momento, uma criança negra aparece pra ele e diz:
_Você não teve culpa.
Saulo se assusta e cai no chão da outra filmagem.
Impossível. Deve ser ilusão. Nunca filmes tão antigos interagiram com ele. Não há tecnologia pra tanto. De onde surgiu o garoto.
Ele está numa festa de um orixá, Obaluaê. Pipocas são jogadas pelos filhos do barracão. Ele sente as pipocas tocando sua pele, se agarrando em seu cabelo.
Imediatamente desliga tudo.
Fica somente uma velha senhora negra. Pelo seus estudos, ele a identifica como Nanã. Um orixá ligado a morte.
Com uma voz de gente bem velha, ela diz:
_Ninguém tem culpa.
Ele aperta o botão da filmagem repetidas vezes e forte. A imagem da velha trava. Distorce e ele continua a repetir:
"NInguém tem culpa."
Finalmente tudo desaparece.
Liga para o médico e marca uma consulta de emergência.
Os médicos e cientistas estão numa reunião mundial, com uma espécie de Skipe que "coloca" as pessoas em 3D dentro de uma sala. As conclusões não são boas.
_Drogas nos corpos suicídas?
_Paulo pelo amor de Deus, elas não existem há séculos! Foram banidas e abandonadas!
_Não podemos descartar nada!!
A transmissão responde:
_Nada. O corpo está limpo. Negativo também para bebidas alcoólicas.
Nesse mundo, não existe nem mais o cigarro... Apenas as bebida ficaram.
_E o cérebro delas?
_Normal. Sem agentes externos ou má formações.
O cientista soca a mesa.
_Tem que ter alguma coisa. Algo que está se escondendo de nós!
_Pode ser uma "modinha". Afinal, passamos por ciclos parecidos. Desafios mundiais.
_Rastreamos a vida tátil e digital deles. Nada. Apenas no coletivo. Onde grupos surgiam do nada marcando um suicídio entre eles.
_Eles discutiram alguma razão.
_Nada. A não ser as frases: Eu quero morrer. Eu preciso morrer. Eu tenho que morrer. Eu não aguento mais...
_O que a memória deles diz?
_Uma tristeza profunda, mas sem variação na química cerebral. Só a obtivemos por causa de pequenos comportamentos que distoavam do dia a dia. Eles sorriam, amavam, brincavam, pareciam felizes, mas seus íntimos estavam vazios.
_Como conseguiu esta conclusão.
_Nunca ouviu falar da expresão "sorriso amarelo"?
_Sua conclusão é intuitiva, não?
_Bem... Sim.
Havia alegria pra tudo. Até para onde não deveria. Não sei.
_Carla! Isso é uma mesa de debate científicos!! Para de usar o inconclusivo!
_É um novo tipo de depressão, nunca diagnosticada. Só pode. Curamos todas. Curamos o mundo. E agora ela surge mais forte do que nunca.
_Não é o corpo. São suas almas que estão doentes.
_Carla, mais uma pronúcia dessas e estará expulsa do comitê!
_Alma não existe. Comprovamos diversas vezes a capacidade e os meandros cerebrais que faziam com que o homem acreditasse no que não existia e criasse o que queria.
_Sim, reprogramos nossas mentes para algo mais lógico e sensato. Não seria esse o efeito colateral?
_Depois de séculos?
Se levanta da mesa um matemático. Parece estranho ele participar numa conferência dessas, mas tudo está interligado, numa emergência mundial nada deve ser menosprezado.
Ele, através de uma caneta, começa a escrever no ar uma enorme equação, muito conhecida mundialmente.
_Essa é a equação da vida. A fórmula que deu início a revolução humana. Que foi o gatilho para a cura das doenças do Homem e do mundo.
_Sabemos disso.
_Os antigos matemáticos concluíram que anulando duas variáveis, encontraríamos as respostas para o fim do nosso sofrimento: a religão e o caos.
_E foi o que aconteceu. O que traz de novo?
_Ela está errada.
Os cientistas começam a gritar contra o matemático que calmamente, apaga a equação e refaz tudo.
Aos poucos a mesa se silencia. Olhos se arregalam, bocas se abrem.
Todos se olham
O mátematico explica:
_Eles não levaram em conta que anulando as variáveis, os resultados poderiam até ser bons e constante, até chegarmos a um nível de perfeição, onde a constante da vida começaria a cair vertiginosamente, como posso provar aqui.
Ele desenha um gráfico baseado na resposta da equação.
Todos abaixam a cabeça, ficam com os cotovelos na mesa e mãos na nuca.
Era a resposta mais provável para o que estava acontecendo.
O chefe do comitê:
_Ligue para os líderes, agora.
Saulo está em sua casa. Se recuperando de uma tentativa de suicídio. Tentou um tiro na cabeça, mas a bala não fez muitos estragos e seu cérebro foi reconstruído, meio que às pressas. Ele finalmente está lendo a bíblia. Ainda um pouco descrente, mas a leitura lhe faz bem.
A mansão avisa que está recebendo visitas, que se apresentaram como burocratas do governo brasileiro.
Ele permite que a mansão abra as portas para eles, ela os guias até Saulo, que está dentro do seu salão de exposição particular.
_Saulo, não é?
_Sim.
Todos os visitantes ficam abismados com a sua coleção.
_Sabemos que você tem o maior acervo religioso do país e talvez do mundo.
_Sim?
_Precisamos dele.
Saulo arregala os olhos. A negociação vai ser longa e difícil.
Pelo mundo, templos abandonados, os poucos que sobraram, visto apenas como uma curiosidade, uma cápsula do tempo muito distante, são reabertos.
Nas igrejas sinos, nos budistas e mesquitas orações, nos terreiros atabaques.
O povo é atraído pela curiosidade.
Em algum outro lugar do planeta:
_Mãe o que é isso?
_Maconha, o médico receitou pra você. Experimenta.
É assim, óh: Você acende e ao mesmo tempo dá uma tragada.
A mãe começa a gargalhar logo na primeira, Despertando o interesse do filho.
O mundo pouco a pouco volta ao normal.
E não é de hoje que essa doença grita pra ser tratada.
ResponderExcluir<3
Excluirde quien es la imagen o pintura del inicio?
ResponderExcluirÉ arte surrealista, o artista dessa pintura se chama Stephen Mackey
ExcluirCara, você não sabe como essa história mudou meu dia. Na escola, eu vi esse post só que por falta de internet não consegui terminar. Hoje eu quase surtei porque não tava conseguindo achar, mas consegui e terminei de ler. EU AMEI sériokkkk muito bom, no último parágrafo eu arrepiei ao mesmo tempo que ri demaiskkkk Essa história me fez pensar sobre essa tal epidemia, e me fez pensar de uma forma diferente, então muito obrigada por essa experiência, de verdade <3
ResponderExcluirEu que agradeço. Muito obrigada pelo seu carinho.
ExcluirCara essa foi com certeza uma das melhores coisas eu já li na minha vida.
ResponderExcluirObrigada. Fique com Deus. Estou passando por um momento difícil, mas voltarei breve. Visite outros contos. Vc talvez goste.
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