MELHORES AMIGAS



_Veio me buscar?
Ela é tão sutil, tão intrometida, tão quieta, sem educação (nunca bate a porta), indesejada, indiferente. Qual foi o maldito momento em que ela achou que sou sua amiga?
_Vim te visitar.
_Quando combinaremos aquele passeio?
_Não tão cedo.
_Tenho datas propícias, nós duas ganharíamos com isso.
_Eu não tenho tempo. Tenho uma agendo rígida a cumprir.
_E aqueles que fazem as malas, marcam encontro sem combinar nada contigo?
_Eu não compareço.
_Como não?
_É complicado... Café?
Cansei de trocar tapetes e carpetes. Ela sempre derrama tudo. Agora é só passar um pano no chão, e não oferecer nada, se quiser evitar maiores trabalhos, mas a inconveniente visita, sempre pede algo para beber e comer.
E ainda por cima é vegetariana...
A visita começa a falar de novelas, futebol, política, funk, sertanejo, tudo que eu detesto.
Sempre finjo ouvir.
Que razões faz ela me visitar repetidas vezes?
A certeza das minhas limitações.
A minha impotência em me rebelar, quebrar as regras, dá uma banana para as leis, assinar o atestado que o pior de tudo, não é o pior de tudo que tive, tenho e terei em vida.
Viver aprisionada em um corpo fétido, podre em eterna treva, é melhor que a luz da hipocrisia da vida, do peso da infelicidade vivida, do fracasso da sua inútil sobrevivência.
Deus perdoa os condenados.
Amaldiçoa os suicidas.
Deus quer sofrimento, quer vitória. Para ter vitória, é preciso que haja equilíbrio das forças. Para muitos rirem, alguns tem que chorar.
Essa visita tá demorando mais que o de costume.
Em vistas passadas:
Marina está, com um taco de beisebol, socando um esqueleto por horas, pessoas passaram em frente a sua casa e ficaram um tanto curiosas.
Até que um debochado pergunta:
_Não gostou da boneca de halloween?

_Não! Odiei!
O osso virou pó, as vestimentas jogadas no lixo.
Anos mais tarde, adivinha quem batia a sua porta?
Eu achava que ela se vingaria...
Sentou na mesa e me pediu chá...
Marina relembra a primeira vez que a viu. Seria a partir daí a origem da insólita simpatia?
Ela era criança, seus irmão podres, devorados por ratos, seus pais, putrefatos, mas ainda vivos.
Tempos de peste negra.
Alguém entrou em sua casa, sem pedir licença e bater a porta.
Marina perguntou quem era, assim que viu o intruso.
Que apesar das órbitas negras, vazias, virou-se para a criança com espanto.
Mais de 1000 anos se passaram...
Virei a sua melhor amiga
Sua única companhia
Sua confessora
Nunca mais vi os sorrisos de meus pais, as gargalhadas de meus irmãos. 
_Marina! De novo! Para com isso. Já disse que tudo ao seu tempo!
O sangue ainda jorrava da cabeça como uma cachoeira, quente.
Por que não fui aprisionada em meu próprio cadáver, como ela mesmo diz que acontece com os que tentam fazer o mesmo que eu?
Eu sou especial.
Fui amaldiçoada pela eternidade da vida.
Eu me tornei a melhor amiga da morte.




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