COMÉDIA DO PATRIARCADO PRIVADO VI
A Sagrada Família
A avenida ganharia novos vizinhos.
Moravam em outra avenida na mesma rua, a poucos metros de distância.
Dá pra desconfiar de circunstâncias
assim.
Pra que alguém mudaria de casa, algo
sempre trabalhoso e estressante para praticamente não sair do lugar?
Não era problema meu.
A avenida é do meu irmão.
Foi o auge. Quartos alugados e, ao
menos nessa época, sem grandes aborrecimentos, comuns no ramo como:
· Inquilino que antes de sair, quebra a
casa toda por maldade, mesmo este com aluguel atrasado por quase um ano.
Andréia então, levou até a privada do
quarto de onde morava, a porta e quando começou a quebrar a janela, os vizinhos
a impediram. Ela alegava que o morador anterior a ela, que em acordo com meu
irmão, fez consertos no quarto, deu tudo para ela, antes de mudar-se.
· Inquilinos que para alugar,
ajoelharam-se, imploraram, alguns invocaram o nome do Senhor por uma chance de
morar na avenida. Assim que entraram, começaram a infernizar todos os vizinhos,
com bagunça à noite toda, música alta, se um vizinho reclamava, ela não
rebatia, mas o reclamante se deparava com uma vela acesa na sua porta. Finais
de semana, a bagunça era direta, da sexta a noite a segunda feira, não paravam
com o papo, a música (às vezes as brigas) banhos de mangueira, gente mau-encarada
frequentando o lugar, cracudos, maconheiros.
Nesse caso o que salvou a todos foi o
namorado da Paula que era policial. Com ele, a bagunça limitou-se nos fundos da
avenida, onde eles moravam. Quando começou os calotes, e quando meu irmão foi
cobrar, não deu outra, a mulher chamou o morro inteiro pra bater no meu irmão.
Moraram de graça por um ano.
· Casais problemáticos. Esposa que
briga com todas as mulheres da avenida, por ciúme, por pregador de roupa, por
criança, por causa de caixa de fósforo, por pano de chão,(faz um inferno), e o
marido corno brabo que ao chegar do trabalho, escuta toda a reclamação da companheira
tóxica e parte pra brigar com as mulheres vizinhas, mesmo aquelas que trabalham
fora, não sabem de nada, mas que a esposa dele arranjou alguma coisa pra
implicar e querer bater, e que haviam chegado naquele momento.
A avenida vivia o seu momento de paz
e amor entre vizinhos e o senhorio.
A nova família não levantou
suspeitas.
Um casal de meia idade, chegando na
casa dos 50, filhos crescidos, com exceção do caçula, um adolescente, porém
ainda sem a maldade dos hormônios e soberba da puberdade, tão comum
na fase mais imbecil do desenvolvimento humano. Um centenário com Alzeimer tem
mais inteligência e estabilidade mental que a maioria dos adolescentes.
Dois filhos desse casal moravam com
suas famílias, um (adulto) que ainda morava com eles e o adolescente.
Esse rapaz trabalhava fora, os pais
viviam de fazer lembranças para festas infantis e vende-las para as lojas do
Mercadão de Madureira.
Conhecido por suas lojas de macumba,
para onde todos os macumbeiros do Rio de Janeiro se dirigem pra comprar de tudo
para suas obrigações e feituras de santo, de animais a roupas. O lugar ainda
tinha uma feirinha de ervas frescas, todas comum no uso da religião, também é
famoso por seus depósitos de doces, e lojas de festas.
Toda a família se reunia na
fabricação das lembrancinhas.
Os pais e o filho caçula. Sentados em
roda na sala da casa, ouvindo louvor, eles se diziam crentes, tomando cachaça
com limão. Usual combustível da família nessas horas. Pediam até para o filho
pequeno da vizinha comprar na venda do seu Farias a cachaça e o limão.
As coisas iam bem. De noite eles
costumavam bater papo com os vizinhos da avenida no portão, e ficamos sabendo,
sem constrangimentos nenhum as histórias de infidelidade do marido, ele contava
tudo ao lado da esposa e ela participava naturalmente na narração, com os
clichês de sempre:
“Piranhas são elas”
“As filhas dele com a vagabunda não
têm culpa de nada, recebo elas sempre, quando veem visitar o pai, elas me
adoram!”
O cara teve caso até com a cunhada,
sempre que a esposa descobria, era a mesma ladainha: Ela dava em cima de mim!
Tudo ia bem, até que o filho adulto
que morava com eles, resolveu apresentar a namorada de alguns meses para os
pais.
Antipatia automática.
Falavam mal da nora, mas não se
limitavam a reclamar com os vizinhos.
Eles não escondiam que não aprovavam
a garota.
Em poucas semanas, por causa das críticas
e indiretas dos pais para com a menina, aconteceu uma briga gigante na casa,
com gritos e o filho pegando suas roupas e indo embora.
O casal partiu pra cachaça, beberam o
resto da noite, mamados, quando se dirigiam a um vizinho pra conversar, este fugia
do papo.
Começaram os problemas financeiros.
Descobrimos que era o filho que
pagava o aluguel e que ajudava nas compras da casa. Namorando sério, e parecia
realmente ser, os pais podem ter visto o relacionamento do filho o risco da
perda de seu arrimo.
Descobrimos também que vender
lembranças de festas para as loja do Mercadão não é um bom negócio.
O casal entregava centenas de
lembranças, porém os donos das lojas nunca os pagavam.
Eles recebiam conforme as lembranças
eram vendidas...
Isto é: além de ser um retorno demorado,
ainda era pingado.
Quando o Mercadão pegou fogo, encontrei
com um amigo que também vendia mercadorias para os empresários de lá.
_Cara, tu ficou no prejuízo, né?
_Por quê?
_ Ué, o Mercadão destruído, tu
deveria ter muita coisa pra receber deles, não?
_Eu não! Nunca vendi fiado pra
ninguém, principalmente pra esse pessoal.
_Mas conheci um cara que vendia
mercadoria para eles, e nunca recebia na hora, pior, pagavam aos poucos!
_Eles faziam isso com esse cara
porque ele se permitia a isso. Quando um lojista vinha com essa conversa pra cima
de mim, levava a mercadoria embora!
_Caraca...
Aluguel começou a atrasar, meu irmão
a se aborrecer.
No meio do dia, escutou-se tiros, no
beco do Parque Alian. Um cara corria com alguém atirando atrás. Não escapou. Morreu.
Sabe que notícias assim se espalham rapidamente,
e os papa-defuntos não se intimidam, correm pra ver o cadáver do infeliz.
Em meio a roda de gente em torno do cadáver com os comentários de sempre, o patriarca lentamente se aproxima do corpo,
com um pé, vira o corpo que fica de barriga para o chão, avista uma carteira no
bolso da calça jeans, pega abre, descobre que há 30 reais dentro (uma soma
considerável para época), pega joga a carteira no chão ao lado do cadáver, e sai
correndo. Tudo em meio as testemunhas atônitas, que simplesmente não acreditavam
no que estavam vendo.
Pelo resto do dia, ainda contou
vantagem pra todo mundo!
Infelizmente, com os meses atrasados,
meu irmão pediu a casa. A família, diferente da maioria dos inquilinos partiu,
ciente que não tinham como morar mais ali.
Nisso, eles tiveram honra.
Não conhece o Mercadão de Madureira?
Gostou?
Quanto pagaria por ele?
Pix apavoneleite@yahoo.com.br
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