O NATAL DE POLIANDRA





Quando eu era criança, o costume da minha família era toda ela se reunir na casa dos meus pais. Os mais bem sucedidos do clã. Apenas um tio que era tão bem sucedido quanto e algumas irmãs da minha mãe não compareciam na data, estas por preferirem passarem o natal na delas, avessas a aglomerações muita das vezes forçada entre parentes.

Havia um casal de primos que só via nessa data.
Alexandro, um pouco mais novo que o meu irmão caçula e minha prima Gisele um pouco mais velha que eu e minhas outras primas.
Alexandro ficava com meu irmão, mas sempre que seu pai abria uma oportunidade de ter criança (homem) por perto dos adultos, colava na aba do pai.
Gisele era uma chata, e desde os onze anos já se sentia uma “moça”, não participava das brincadeiras, não tomava banho de borracha e não saía de perto das asas da mãe.
Seu papo era sempre o mesmo: o de quanto se divertiu com os adultos (mulheres) na cozinha.
Homens na sala bebendo e mulheres na cozinha. Essa era a espera da ceia.
Sempre havia um tio que trazia uns conhecidos de quem a gente nunca ouviu falar, mas meus pais sempre os recebiam bem, e nunca faltava um canto, um cobertor e um lugar na mesa para acolher a todos.
 Gisele aparecia, eu não me preocupava mais em fazer sala para ela.
Com a bebedeira pós-natal o clima às vezes ficava pesado. Com parente falando o que não deve.
Em uma delas, a mãe de Gisele chamou o marido pra dentro de casa, que bebia e ria muito com seus irmãos e irmãs, e deu um tapa na cara dele. Ela estava com ciúmes das cunhadas...
Minha mãe jogava na cara umas verdades para o meu pai, como os dentes que ela foi obrigada a arrancar para parar abruptamente o tratamento que estava fazendo com o dentista. O inferno que meu pai fazia a cada consulta lhe obrigou a tomar essa decisão. Décadas depois minha tia insinuou que o dentista remotamente poderia ser o meu pai, mas sou a cara esculpida em carrara do seu Alberto. E tudo não passou de um flerte ilusório de uma dona de casa carente e oprimida.
Da outra vez ela começou a dizer que Juliano se parecia com português. Minha tia se encolheu toda e ficou paralisada. Hoje eu entendo a razão da difícil relação de Juliano com o seu pai... E porque das suas irmãs serem mulatas e ele um branco azedo.


Meus pais faliram, morreram e a família se dissipou.
Meu natal agora é bem diferente.
Faço uma ceia só pra mim e me empanturro de comida enquanto assisto a missa do galo.
De uns anos pra cá as coisas pioraram. Perdi meu emprego e faço um bico aqui ou ali. Não vou poder gastar o pouco que tenho em uma ceia, mesmo que seja só pra mim.
Não querendo passar mais um natal de frente à TV ou dormindo, saí pelas ruas da minha cidade.
Curiosamente ainda havia comércio aberto. Bares principalmente. Sorte dos pinguços, dos “sem família” dos solitários, dos abandonados e esquecidos.
Sentei em um deles e pedi uma garrafa de vinho. Eu não bebo, mas precisava de algo pra consumir muito pouco ou bem devagar, para desculpar o fato de ficar sentada nele.
Próximo à meia-noite, com a garrafa com mais da metade ainda cheia, me levantei em direção ao balcão para pagar e partir. A dona do bar pediu para ficar, assim como seus filhos. Eu estava convidada para cear com eles.
Fiquei sem graça e surpresa, aceitei.
Depois ajudei a senhora na limpeza da cozinha e a levar salgados para o bar 24 horas. Um recanto de bêbados e prostitutas que nunca fecha. Daí o nome.
Entusiasmada coloquei meia dúzia de músicas para ouvir na juke Box e comecei a dançar.
O filho mais velho dela se aproximou e de forma ríspida disse que era hora de eu ir embora.
Atravesse o sinal.
Meu simancol mais uma vez falhou.
De convidada, passei a ser inconveniente.
Despedi-me da matriarca e voltei para minha casa cabisbaixa, cheia de vergonha de mim mesma por ter estragado o que poderia ser o melhor natal dos últimos anos.


No caminho sem querer derrubo a garrafa de vinho de um cara sentado na calçada da rua. Tentei me desculpar, mas ele começou a gritar e me xingar, disse que lhe compraria outra imediatamente, mas ele negou, pois queria beber o vinho  cuja garrafa quebrei e derramei.
Assustada pela fúria do homem que chorava de raiva e estava prestes a me agredir com pedras, fugi correndo.
Esse foi só mais um natal na minha vida.
Detesto natal
Odeio natal
“Natal! Natal!
Eu fico triste quando chega o natal!
E o ano novo também...”

Poliandra nunca mais compareceu ao bar. A matriarca, Dona Neusa havia decidido em lhe oferecer um emprego, mas como ela sumiu...
Já o esquentado da garrafa de vinho atropelada, fazia questão de beber aquele vinho, pois este estava cheio de veneno de rato. Ele queria se matar e Poliandra “impediu” o seu suicídio.
Em janeiro depois de meses desempregado, ele conseguiu uma colocação, reconquistou a família que havia perdido e está crescendo na empresa. Nunca mais viu a moça que sem querer lhe deu essa segunda chance para agradecer e se desculpar.

Poliandra continua sozinha, e sua vida econômica só tem piorado. No ano novo e no natal ela adquiriu outros costumes: o de pegar um ônibus qualquer, para que no badalar dos sinos comemorativos, ela abrace estranhos, o motorista e o trocador, quando convidada por um passageiro para cear ou virar o ano na casa de alguém,  ela agradece, nega o convite e desce imediatamente no ponto seguinte... 




Comentários

  1. Você melhorou muito a narrativa, adorei !
    Escreva, escreva, escreva.
    Abraços e feliz natal querida amiga.
    Até o natal vou postar a minha vivência de natal
    Lou

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  2. Obrigada. O texto é antigo. devo ter altos e baixos.. Mas vou me fiscalizar melhor.

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