O BATE-BOLA

Se nos países de língua saxônica, existe o Dia das Bruxas, que é o dia em que um portal se abre para que almas do submundo caminhem sobre a terra.
No Brasil, embora sem a consciência de todos, temos o carnaval.
A festa da carne.
A festa pagã, condenada pelos cristãos, amada pelos pagãos e pelos cristãos-umbandonblezistas, que antes dele, fazem os seus ebós de limpeza e proteção e depois dele, vão para a missa de quarta-feira de cinzas receberem as bênçãos do padre.

No carnaval, quem não deve, não teme, e sai à rua para pular a sua alegria, quem deve, sai assim mesmo, porque são apenas quatro dias por ano e não dá pra se esconder nos dias em que o país inteiro sai às ruas para brincar.

Rosana tomou um verdadeiro pavor do carnaval.
Diz que estava entre a multidão na grande festa, toda feliz a cantar, bailar com a sua cerveja na mão, quando um desconhecido que estava ao seu lado, cai duro no chão, atingido por um tiro.
Tiro que ninguém ouviu.
Atirador que ninguém viu.
_Carnaval pra mim agora, só em casa assistindo os desfiles das escolas de samba.

Diferente de Geraldo Fino, que em todos os anos, sai à rua para brincar.
_Geraldo, fica em casa, é carnaval, sabe que pessoas saem nessa época do ano para acertar suas contas.
_IH, mãe! Me deixa!
Esse diálogo se repete por quase trinta anos. Sua mãe sabe o filho que tem.
O seu ofício é “passar a perna nos outros.”
Roubo e falsificação de cartão de crédito, cheques, empréstimos em nome de outros, vender mercadorias “achadas” e de vez em quando, roubar (mais) um otário em jogos de azar, na banquinha que ele costuma montar em feiras livres ou nas ruas.
Geraldo tem sua consciência limpa e livre. Acredita que se não fosse ele, outro faria, pois otários existem de montão pelo mundo, prontos para serem enganados.

E lá vai ele, fantasiado de mulher, pular o seu carnaval, dessa vez ele caprichou: Explicava para todo mundo que estava fantasiado de “feminista”.
_Sou uma daquelas mulheres comunistas da “Marcha das Vadias”_Diz empinando a sua bandeira e rodando-a no ar, com o escrito:
“Poder feminino! Dou pra todo mundo e quem mais quiser!”
E ainda distribuía santinhos com os dizeres: “Meto antes para abortar depois. Respeitem o meu direito de matar nenéns!” Diferente dos anos anteriores, dessa vez ele não raspou as pernas e nem fez a barba: _Feminista não se depila. Quero ser “autêntica”.
_Quero ver você enfiar um crucifixo no rabo, como elas fazem! AHAAHAHA!
E riam sem parar.
Bandeira numa mão, lata de cerveja na outra.

Belford Roxo, com alguma morte aqui ou ali, em meio à folia, apesar dos contratempos, sempre teve um carnaval tranqüilo. É porque muitos preferem Nova Iguaçu ou São João de Meriti ou mesmo São Vicente e Santa Maria, bairros afastados do centro de Bel.
Há uma multidão na praça, mas nada lotado. As pessoas brincavam sem se esbarrarem uma nas outras ou pisarem nos pés de alguém.
_Vão pra praça, mãe!
_Não! Nós vamos para a igreja!
E a mãe puxa o filho pelo braço, adentrando a Igreja Universal.
Em meio a alegria e a bagunça, Geraldo percebe que está sendo paquerado por uma mulher (?)
Ele vai logo se aproximando da moça.
_Antes de mais nada: Você é mulher?
A voz da fantasiada era muito parecida com a de um viadinho:
_Sou.

_Se é mulher, para que essa fantasia?
_Quer atestar, gato?
Ela levanta os braços para o alto, como uma diva em meio aos seus holofotes, porém dando a entender que quer ser “revistada” por ele.
Como é carnaval, ele passa sua mão em todos os seus cantos. (Todos!)
_Sabia que fantasias assim, podem te levar para cadeia hoje em dia?
_Ela estava fantasiada de “nega maluca”, saínha babada com uma mini-blusa, ambas vermelha de bolinhas brancas, todo o corpo coberto com uma meia-calça preta, a boca aumentada com um batom vermelho, a cara pintada de preto, uma peruca de cabelos curtos, enrolados para o alto, brincos de argola, pulseiras, anéis, e sandálias plataforma completam o visual.
_O que você ver como racismo, eu vejo como um protesto contra os estereótipos, docinho.
É carnaval, e nele podemos tudo.
Eles formam um casal.
Brincam, bebem juntos.
Até que ela faz um sinal para ele e se afasta, olhando de vez em quando para trás, para ver se Geraldo Fino a segue.
E ele entende e vai.
Se dirigirem a rua ao lado da praça, apesar de vizinha a festa, esta rua está deserta.
Nega Maluca se dirige a uma enorme marquise de uma loja, bem escura.
Geraldo começa a babar de ansiedade pelo que em breve vai acontecer.
Nega Maluca chega primeiro e praticamente some dentro da sombra da marquise.
Ele aperta os passos, levantando a minissaia para o alto, preparando a genitália para o ato, exibindo assim a calcinha no melhor estilo “Fernado Gabeira” que usa.

Na praça, tudo corre bem, até uma confusão surgir do calçadão, pessoas correm desesperadas, poucos da multidão na praça se abalam, uma confusão aqui ou ali em meio a festa é normal.
Um grito abafa até a música das caixas de som:
_SOCORROOOOOO!
É Geraldo Fino. Atrás dele, um bate-bola com uma bexiga de boi, como nos velhos tempos.
Muitos riem, até o bate-bola rodar a sua bexiga como um exímio guerreiro no ar e bater com ela no chão, na intenção de acertar o Geraldo.
Ao atingir o chão, ouve-se uma enorme explosão, a ponto de sair fogo, e abrir buraco no calçadão.
Só aí que o povo corre; entre a multidão, surge  outro bate-bola com sombrinha na mão. Esse coloca o pé bem no caminho de Geraldo que cai violentamente no chão.
Alguns corajosos tentam acudi-lo, mas ao ver o bate-bola rodopiando no ar novamente a sua bexiga, o deixam cair e saem correndo.
Geraldo se machucou muito, mas a adrenalina inibiu a dor e ele tenta se levantar, sem conseguir a tempo, no último segundo, rola para o lado e a bexiga atinge o outro.
O barulho da batida o deixa zonzo e com zumbido no ouvido. O chão se abre, dessa vez de forma mais funda, ele se segura na beira do enorme buraco que continua a se abrir, ele está pendurado agora, e quando olha para baixo, vê o inferno.
_NÃO! NÃÃÃÃÃOOOO!
Moradores dos sobrados da praça, fecham suas janelas, entradas das vilas são trancadas, ninguém mais entra. Moradores assistem a tudo pela fresta da janela, outros, se sentindo seguros, assistem por trás das grades da porta.
O bate-bola de sombrinha se aproxima dele.
Seu ouvido ainda zumbi, mas ele, mesmo com dificuldade, entende o que ele diz:
_Deveria ter escutado a sua mãe.
_Quem são vocês?! Por favor! Não!!
_O carnaval é a festa da carne, mas só os livres de pecados podem brincá-la.
Quem deve, não pula carnaval.
Espíritos vingadores, zombeteiros, povos da rua famintos por almas perdidas saem à caça de pessoas como você, Geraldo.
O bate-bola dá um pisão dos dedos de Geraldo que ainda assim não solta.
_Ai! Ai! Ai! Por favor! Não vou mais enganar ninguém!!_Geraldo abre o berreiro de dor e desespero, por segundos todas as vítimas que ele enganou surgem na sua mente: velhinhos, viúvas, e pessoas de bem que achavam que no mundo, todos eram como elas, até conhecerem Geraldo Fino_
Sua vontade de viver é tanta, que mesmo com os dedos quebrados, ele ainda se apega a terra.
Do fundo do buraco, surge a figura de um homem com terno e bíblia na mão.
_Não tenha medo Geraldo. Estou aqui para te ajudar. Se arrependa, aceite Jesus que te tiro daqui, Jesus expulsa os demônios, subjuga Satanás!  É só se arrepender e deixar-se cair que ti acudirei. Deus é poder!
Ele vê o bate-bola de afastar, como se temesse o homem de Deus, abaixo dele, flutuando no ar entre ele e as chamas do inferno.
_Perdoa-me Senhor! Aceito Jesus como meu único salvador e Deus como criador de todas as coisas!
_Isso Geraldo, agora venha.
Diz o pastor, com os braços em posição para recebê-lo.
Geraldo se deixar cair e vai em direção ao colo do crente, começa a chorar e agradecer, porém o crente, ainda segurando o choroso Geraldo abre a sua bíblia que estava em uma de suas mãos, sacudindo o livro.
 É uma bíblia cheia de fotos de mulheres nuas, bem escancaradas, o crente começa a rir e solta Geraldo, que cai gritando nas lavas do inferno...




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